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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Capítulo VIII - Cinco Minutos

DEVOREI toda esta carta em um fôlego só.
Meus olhos corriam sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar, poderia até dizer sem respirar.
Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir ajoelhar-me a seus pés e receber como uma bênção do céu esse amor sublime e santo.
Como sua mãe, lutaria contra o destino, eu a cercaria de tanto carinho e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bela e tão tranqüila, prenderia tanto sua alma à terra, que seria impossível deixá-la partir.

Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem as misérias e as lágrimas deste mundo em que vivemos; um mundo só de alegria, onde a dor e o sofrimento não pudessem entrar.
Pensava que devia haver no mundo algum lugar desconhecido, algum canto de terra ainda sem o contato do homem, onde a natureza intocada conservaria o perfume dos primeiros tempos da criação e o contato das mãos de Deus quando a desenvolveu.

Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio do sol não viesse carregado de um átomo de fogo celeste; que a água, as árvores, a terra, cheia de tanta força e de tanto energia, não transmitisse na criatura essa vitalidade poderosa da natureza no seu inicial esplendor.
Iríamos, então, a um desses lugares desconhecidos; o mundo abria-se diante de nós e eu me sentia com bastante força e bastante coragem para levar o minha amada além dos mares e das montanhas, até achar um lugar onde esconder a nossa felicidade.

Nesses lugares, tão espaçosos, tão amplos, não haveria sequer vida bastante para duas criaturas que apenas pediam um palmo de terra e um sopro de ar, a fim de poderem elevar a Deus, como uma prece constante, o seu amor tão puro?
Ela me dava vinte e quatro horas para pensar e eu não queria nem um minuto, nem um segundo.

Que me importavam o meu futuro e a minha existência se eu os sacrificaria de bom grado para dar a ela mais um dia de vida?
Todas estas ideias, minha prima, passavam pelo meu espirito, rápidas e confusas, enquanto eu fechava na caixinha de madeira os objetos preciosos que ela me enviou, anotei na minha carteira o seu endereço, escrito no fim da carta, e atravessei o espaço que me separava da porta do hotel.

Aí encontrei o empregado da noite seguinte.
— A que horas sai o barco da Estrela?
— Ao meio-dia.
Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria os quatro quilômetros que me separavam daquele porto.
Olhei ao meu redor com uma espécie de desespero.
Não tinha um trono, como Ricardo III, para oferecer em troca de um cavalo; mas tinha a realeza do nosso século, tinha dinheiro.

A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o seu dono segurava pela rédea.
— Quero comprar este cavalo, eu disse, caminhando para ele, sem mesmo perder tempo em cumprimentá-lo.
— Não pretendia vendê-lo, respondeu-me o homem educadamente; mas, se o senhor está disposto a dar o preço que ele vale...
— Não importa o preço; compro o cavalo arreado como está.
O sujeito me olhou admirado; porque, pra falar a verdade, os seus arreios não valiam nada.

Quanto a mim, já tinha tirado as rédeas da mão do homem e, sentado no selim, esperava que me dissesse quanto tinha de lhe pagar.
— Não se assuste, fiz uma aposta e preciso de um cavalo para ganhá-la.
Com essa explicação, o homem pareceu compreender a natureza do meu ato e a pressa que eu tinha. Pegou o dinheiro sorrindo e disse, acenando para mim com as mãos, pois já estava dobrando a esquina:
— Espero que ganhe a aposta; o animal é excelente!
Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo mesmo, ou antes com a minha razão, a qual me dizia que era impossível chegar a tempo de pegar o barco, e que eu tinha feito uma extravagância sem necessidade, pois bastava ter paciência por vinte e quatro horas.

Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da fraqueza humana; criado com uma migalha do fogo divino, ele eleva o homem acima da terra, desprende-o do chão e dá-lhe força para dominar todos os obstáculos, para querer o impossível.
Esperar tranqüilamente um dia para dizer que eu a amava e queria amá-la com todo o culto e admiração que me inspirava a sua nobre renúncia, me parecia quase uma desonra.

Seria o mesmo que dizer a ela que tinha pensado friamente, que tinha pesado todos os prós e os contras do passo que ia dar, que havia calculado como um egoísta a felicidade que ela me oferecia.
Não só a minha alma se revoltava contra esta ideia; mas sabia que ela, com a sua extrema delicadeza de sentimento, embora não reclamasse, ficaria magoada por ser alvo de uma análise desse tipo.

A minha viagem foi uma corrida louca, furiosa, fantástica. O cavalo, passava por entre a cerração da manhã, que cobria os cumes da serra, como uma sombra que fugia rápida e veloz.
Diria até que alguma rocha colocada em uma das cabeças da montanha tinha-se soltado, e rolava surdamente pelas encostas tal o vento que fazia a passagem do cavalo.

As árvores, cercadas de neblina, fugiam diante de mim como fantasmas; o chão desaparecia sob os pés do animal; às vezes parecia que a terra ia faltar e que o cavalo e cavaleiro rolavam por algum desses abismos imensos e profundos.
Mas, de repente, entre uma aberta de neblina, eu vi a linha azulada do mar e fechei os olhos e apressei ainda mais o meu cavalo, gritando-lhe ao ouvido a palavra de Byron:
— Away!

Ele parecia me entender e avançava numa corrida desesperada; não galopava, voava; seus pés, como que conduzidos por quatro molas de aço, nem tocavam a terra.
Assim, minha prima, devorando o espaço e a distância, foi ele, o nobre animal, cair exausto a alguns passos apenas da praia; a coragem, as forças e a vida só o tinham abandonado no fim da viagem.

Em pé, ainda sobre o cadáver desse companheiro leal, avistei a poucos metros o barco que navegava ligeiramente para a cidade.
Alí fiquei, por quase uma hora, seguindo com os olhos esse barco que levava a minha amada; e quando o barco desapareceu, olhei ainda por bom tempo os flocos de fumaça que ele deixava no ar e que o vento desfazia a pouco e pouco.
Por fim, quando tudo desapareceu e que nada mais me falava dela, olhei ainda o mar por onde havia passado e o horizonte que a escondia dos meus olhos.
O sol soltava raios de fogo; mas eu nem me importava com o sol; todo o meu espírito e os meus sentidos se concentravam em um único pensamento; encontrá-la, vê-la em uma hora, em um momento, se possível fosse.

Um velho pescador arrastava nesse momento a sua canoa à praia.
Aproximei-me e disse-lhe:
— Meu amigo, preciso ir à cidade, perdi a barca e gostaria que você me levasse em sua canoa.
— Mas se eu acabei de chegar!
— Não importa; pagarei o seu trabalho, pago também o incômodo que isto lhe causa.
— Não posso, não, senhor, não é pelo dinheiro, mas é que passei a noite toda no mar e estou caindo de sono.
— Escute, meu amigo...
— Não perca seu tempo, senhor; quando eu digo não, é não; e está dito.

E o velho continuou a arrastar a sua canoa.
— Está bem, não vamos mais falar nisto; mas vamos conversar um pouco.
— Como senhor quiser.
— A sua pesca rende bastante?
— Que rende nada!...
— Mas então me diga: Se houvesse um jeito de ganhar em um só dia o que pode ganhar em um mês, não enjeitaria não é?
— Isto é coisa que se pergunte?
— Mesmo quando fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no mar?
— Ainda que devesse remar três dias e três noites, sem dormir nem comer.
— Nesse caso, meu amigo, prepare-se, que vai ganhar o seu mês de pescaria; leve-me à cidade.
— Ah! Assim já é outra coisa! Por que não disse logo?...
— E precisava explicar mais?!
— Bem diz o ditado que é falando que a gente se entende.
— Então está decidido. Vamos embarcar?
— Com licença; preciso de um instantinho para avisar minha mulher; mas é um passo lá e outro cá.
— Olhe, não demore; tenho muita pressa.
— É em um fechar de olhos, disse ele, correndo na direção da vila.
Mal ele tinha dado vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo caminho.

Eu tremia; julgava que tinha se arrependido, que vinha apresentar-me algum novo empecilho. Chegou perto de mim de olhos baixos e coçando a cabeça.
— O que aconteceu, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava por ter calma.
- É que... o senhor disse que pagava um mês...
— Isso mesmo; e, se duvida, disse, levando a mão ao bolso.
— Não, senhor, Deus me livre de desconfiar do senhor!
Mas é que... bem, o mês agora tem menos um dia que os outros!
Não pude deixar de achar graça do medo do velho; nós estávamos no mês de fevereiro.
— Não se importe com isto; quando eu digo um mês, é um mês de trinta e um dias; os outros são meses aleijados, e não contam.
— É isso mesmo, disse o velho, rindo da minha idéia; assim como quem diz, um homem sem um braço. Ah!... ah!...

E, continuando a rir, seguiu para sua casa e desapareceu.
Quanto a mim, estava tão contente com a idéia de chegar à cidade em algumas horas, que não pude deixar também de rir do caráter original do pescador.
Estou contando a você essas cenas e as outras que seguiram com todos os detalhes por duas razões, minha prima.
A primeira é porque desejo que entenda bem o drama simples que decidi lhe contar; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memória as menores particularidades dessa história, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento a essas lembranças, que não quero deixar de fora nem um único detalhe; sinto que se fizesse isso, tiraria uma parte de minha vida.

Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, conduzida pelo braço ainda forte e ágil do velho pescador.
Antes de partir, mandei enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar assim exposto aos urubus o corpo desse nobre animal, que eu tinha tirado do seu dono, para sacrificá-lo para satisfação de um capricho meu.

Talvez isso lhe pareça uma infantilidade; mas você é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de afeição, que espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós que toma conta até dos objetos inanimados, quanto mais das criaturas, ainda irracionais, que um momento se ligaram à nossa existência para realização de um desejo.

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Aluno Elidio