Continuei a ler:
"Estava condenada a morrer; estava com uma doença fatal e traiçoeira, que chega de mansinho no meio dos prazeres e dos risos da vida., nos deixa de cama , e da cama leva ao túmulo, depois de ter rido da natureza, transformando as suas belas criações em múmias.
É impossível descrever para você o que se passou então comigo; foi um desespero mudo e concentrado, mas que me deixou em uma dor profunda; foi uma angústia forte e cruel.
A minha vida estava apenas no começo e já recebia o bafo da morte!
Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças, meu puro amor, que nem sequer ainda tinha recebido o primeiro sorriso, este céu, que há pouco me parecia tão brilhante, tudo isto era uma visão que ia sumir, uma luz que brilhava prestes a se apagar.
Foi preciso um esforço sobre-humano para esconder de minha mãe a certeza que eu tinha sobre o meu estado e para rir dos seus temores, que eu dizia ser imaginários.
Boa mãe! Desde então só viveu exclusivamente para mim, para cuidar de mim com esse carinho e essa proteção que Deus deu ao coração materno, para envolver-me com suas preces, para lutar com a força de amor e de dedicação contra o destino.
Logo no dia seguinte fomos para Andaraí, onde ela alugou uma chácara, e aí, graças a seus cuidados, adquiri tanta saúde, tanta força, que ao me ver, acharia que estava boa se não fosse o diagnóstico fatal que pesava sobre mim.
Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um coração de mãe, meu querido! Que tato delicado, que sensibilidade apurada, possui esse amor sublime!
Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era obrigada a agasalhar-me, se visse como ela pressentia as rajadas de um vento frio antes que ele agitasse os galhos das árvores do jardim, como adivinhava a menor neblina antes que a primeira gota umedecesse a laje do nosso terraço!
Fazia tudo para distrair-me; brincava comigo como uma colega de colégio; achava prazer nas menores coisas para me animar a imitá-la; tornava-se menina e obrigava-me a cuidar da aparência.
Enfim, meu querido, se fosse te contar tudo, escreveria um livro e esse livro deve ter lido no coração de tua mãe, porque todas as mães se parecem.
Ao fim de um mês tinha recobrado a saúde para todos, exceto para mim, que às vezes sentia algo como uma contração, que não era dor, mas que me dizia que o mal estava ali, e dormia apenas.
Foi nesta ocasião que te encontrei no ônibus de Andaraí; quando você entrou, a luz do lampião iluminou seu rosto e eu te reconheci.
Faz idéia que emoção senti quando se sentou perto de mim?
O mais você sabe; eu te amava e estava tão feliz de te-lo do meu lado, de apertar a tua mão, que nem me lembrava como devia parecer ridícula para você uma mulher que, sem te conhecer, te permitia tanto.
Quando nos separamos, arrependi-me do que tinha feito.
Com que direito eu ia perturbar a tua felicidade, condena-lo a um amor infeliz e obriga-lo a unir tua vida a uma existência triste, que talvez não pudesse te dar mais que os tormentos de conviver por muito tempo com uma pessoa a beira da morte?!
Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido a graça de ser tua companheira neste mundo, não devia ir roubar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz, porém menos dedicada, teria de ocupar.
Continuei a ama-lo, mas impus a mim mesma o sacrifício de nunca ser amada, por você.
Vê, meu querido, que não era egoísta e preferia a tua à minha felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa.
Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro e esperei que em alguns dias você esqueceria aquele encontro quebrasse o único e bem frágil laço que te prendia a mim.
Deus não quis que acontecesse assim; vendo-o só em um baile, tão triste, tão pensativo, procurando um ser invisível, uma sombra e querendo descobrir os seus vestígios em algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer imenso.
Percebi que você me amava; e, perdoa, fiquei orgulhosa dessa paixão ardente, que uma só palavra minha havia criado, desse poder do meu amor, que, por uma força de atração inexplicável, tinha te ligado à minha sombra.
Não pude resistir.
Aproximei-me, e lhe disse uma palavra sem que tivesse tempo de me ver; foi essa mesma palavra que resume todo o poema do nosso amor e que, depois do primeiro encontro, era, como ainda hoje, a minha prece de todas as noites.
Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de minha oração, ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deus, chamo a tua imagem para pedir-lhe que não te esqueças de mim.
Quando você se voltou ao som da minha voz, eu entrei rapidamente no banheiro; e pouco depois saí daquele baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo por causa da minha imprudência, mas alegre e feliz por ter visto você mais uma vez.
Deve entender agora o quanto sofri no teatro quando me fez aquela acusação injusta, no momento mesmo em que a Charton cantava a ária da Traviata.
Não sei como não me traí naquele momento e não te disse tudo; o teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu não devia destruí-lo para satisfação de meu amor próprio ofendido.
No dia seguinte escrevi para você; e assim, sem me trair, pude ao menos fazer com que pensasse bem de mim; doía-me muito que, ainda mesmo não me conhecendo, tivesse uma idéia tão injusta e tão falsa sobre mim.
Preciso dizer-lhe que no dia seguinte ao do nosso primeiro encontro, tínhamos voltado à cidade, e eu te via passar todos os dias diante de minha janela, quando fazia o teu passeio de todos os dias.
Por detrás das cortinas, seguia-o com o olhar, até que desaparecia no fim da rua, e este prazer, rápido como era, alimentava o meu amor, acostumado a viver de tão pouco.
Depois da minha carta você deixou de passar dois dias, eu estava de viagem marcada para este lugar onde me encontrou e de onde deveria sair apenas para embarcar em um navio inglês.
Minha mãe, incansável nos seus cuidados, quer levar-me à Europa para um passeio pela Itália, pela Grécia, por todos os países de um clima doce.
Ela diz que é para mostrar-me os grandes modelos de arte e alegrar o meu espírito, mas eu sei que essa viagem é a sua única esperança, que não podendo fazer nada contra a minha doença, quer ao menos ficar próxima de mim por mais algum tempo.
Acha que a viagem me dará mais alguns dias de vida, como se estas sobras de vida valessem alguma coisa para quem já perdeu a sua juventude e o seu futuro.
Quando estava embarcando para cá, lembrei-me de que talvez não te visse mais e, diante desse último pensamento, desabei. Queria ter ao menos o consolo de dizer-lhe adeus!...
Era o último!
Escrevi então a segunda carta para você; preocupei-me com a tua demora, mas tinha uma quase certeza de que viria até mim.
Não me enganei.
Você veio, e toda a minha decisão, minha coragem cedeu, porque, sombra ou mulher, entendi que você me amava como eu te amo.
O mal estava feito.
Agora, meu amor, peço-te por mim, pelo amor que tem por mim, que pense no que vou te dizer, mas que pense com calma e tranqüilidade.
Para isto parti hoje de Petrópolis, sem te contar, e coloquei entre nós o espaço de vinte e quatro horas.
Desejo que não faça nada precipitadamente e que, antes de dizer qualquer palavra, tenha percebido todo o alcance que ela deve ter sobre o teu futuro.
Sabe pra onde vou, sabe que sou uma vítima, cuja hora está marcada, e que todo o meu amor, imenso, profundo, não pode te oferecer, talvez dentro de bem pouco tempo, nada mais que um sorriso contraído pela tosse, um olhar entristecido pela febre e carícias roubadas aos sofrimentos.
É triste; e não deve sacrificar assim a tua bela mocidade, que ainda te reserva tantas aventuras e talvez um amor muito especial.
Deixo para você uma foto minha, meus cabelos e minha história; guarde-os como uma lembrança e pense algumas vezes em mim: beije esta folha de papel, onde os meus lábios deixaram-te meu adeus.
Entretanto, meu querido, se, como você disse ontem, a felicidade é amar e sentir-se amado; se acha que tem força para compartilhar essa minha curta existência, esses poucos dias que me restam a passar sobre a terra, se quer me dar esse consolo, único que ainda embelezaria minha vida, vem!
Sim, vem! iremos pedir ao belo céu da Itália mais alguns dias de vida para nosso amor; iremos aonde você quiser, ou aonde nos levar o destino.
Viajantes pelas eternas solidões dos mares ou pelos lugares altos das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protetor de Deus, à sombra dos cuidados de nossa mãe, viveremos tanto um como outro, encheremos de tanto amor os nossos dias, as nossas horas, os nossos instantes, que, por curta que seja a minha existência, teremos vivido por cada minuto séculos de amor e de felicidade.
Eu espero; mas temo.
Espero-o como a flor quase morta espera o raio de sol que deve aquecê-la, a gota de orvalho que pode animá-la, o hálito da brisa que vem despertá-la. Porque para mim o único céu que hoje me sorri, são teus olhos; o calor que pode me fazer viver, é o do teu abraço.
Entretanto temo, tenho medo por você, e quase peço a Deus que te inspire e te salve desse sacrifício talvez inútil!
Adeus para sempre, ou até amanhã!"
CARLOTA
Nenhum comentário:
Postar um comentário