"Devo-te uma explicação, meu querido.
Esta explicação é a história da minha vida, breve história, cuja parte mais bonita foi a sua passagem por ela.
Cinco meses antes do nosso primeiro encontro eu completava os meus dezesseis anos, a vida começava a sorrir para mim.
A educação rigorosa que minha mãe me deu, me conservou menina até àquela idade, e foi só quando ela julgou que era hora de eu conhecer o mundo tal como ele é, que eu perdi as minhas idéias de infância e as minhas inocentes ilusões.
A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquela multidão de homens e mulheres, que giravam em torno de mim sob uma atmosfera de luz, de música, de perfumes.
Tudo me causava espanto; esse abandono com que as mulheres se entregavam ao seus pares de valsa, esse sorriso constante e sem expressão que uma moça parece colocar no rosto na porta da entrada para só deixá-lo na saída, esses elogios sempre os mesmos e sempre sobre um tema banal, ao mesmo tempo que me deixavam curiosa, faziam desaparecer o entusiasmo.
Você estava nesse baile; foi a primeira vez que te vi.
Reparei que nessa multidão alegre e barulhenta você só não dançava, e passeava pelo salão como um espectador mudo e indiferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher.
Compreendi você e durante muito tempo, o segui com os olhos; ainda hoje me lembro dos teus menores gestos, da expressão do teu rosto e do sorriso de fina ironia que às vezes fugia dos teus lábios.
Foi a única recordação que trouxe dessa noite, e quando adormeci, os meus doces sonhos de infância, que, apesar do baile, vieram a minha mente, apenas foram interrompidos um instante pela tua imagem, que me sorria.
No dia seguinte renovei a minha existência, feliz, tranqüila e descuidosa, como costuma ser a vida de uma moça aos dezesseis anos.
Algum tempo depois fui a outros bailes e ao teatro, porque minha mãe, queria fazer que eu brilhasse para o mundo.
Quando cedia aos pedidos dela e ia me aprontar, enquanto preparava o meu simples traje, murmurava: — Talvez ele esteja.
E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com que procurasse ficar mais bonita, para merecer um primeiro olhar.
Ultimamente era eu quem, cedendo a um sentimento que não sabia explicar, pedia a minha mãe para sair, só na esperança de encontrar-lo.
Você nem desconfiava então que, entre todos aqueles vultos indiferentes, havia um olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava os teus pensamentos, que se agigantava quando te via sorrir e contraía-se quando uma sombra deixava seu rosto triste.
Se diziam o teu nome perto de mim, ficava vermelha e na minha perturbação julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de minh'alma, onde eu bem sabia que ele estava escrito.
E, entretanto, você nem sequer ainda tinha me visto; se teus olhos haviam passado alguma vez por mim, tinha sido em um desses momentos em que a luz se volta para o íntimo, e se olha, mas não se vê.
Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos uniria, e então, alguma coisa me dizia que seria impossível você não me amar.
O acaso aconteceu, mas quando a minha vida já estava completamente transformada.
Ao sair de um desses bailes, apanhei uma pequena constipação, mas não dei importância. Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava apenas que estava um pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentando ao piano e tocando alguma música de bravura.
Um dia, porém, me senti muito abatida; tinha as mãos e os lábios em febre, a respiração era difícil, e ao menor esforço suava muito com uma transpiração que me parecia gelada.
Atirei-me sobre um sofá e, com a cabeça recostada ao colo de minha mãe, caí em um estado de sono que não sei quanto tempo durou. Lembro-me somente que, no momento em que ia acordando dessa sonolência que se apoderara de mim, vi minha mãe, sentada à cabeceira da minha cama, chorando, e um homem dizia-lhe algumas palavras de consolo, que eu ouvi como em sonho:
— Não se desespere, minha senhora; a ciência não é infalível, nem os meus diagnósticos são irrevogáveis.
Pode ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso não perder tempo.
O homem partiu.
Não tinha compreendido as suas palavras, às quais não faziam o menor sentido.
Passando um instante, ergui tranqüilamente os olhos para minha mãe, que escondeu o lenço e o choro.
— Está chorando, mamãe?
— Não, minha filha, claro que não...
— Você está com os olhos cheios de lágrimas!... disse eu assustada.
— Ah! sim!... uma notícia triste que me contaram há pouco... sobre uma pessoa... que você não conhece.
— Quem é este senhor que estava aqui?
— É o Dr. Valadão, que veio visitar você.
— Então eu estou muito doente, mamãe?
— Não, minha filha, ele garantiu que você não tem nada; é apenas um probleminha de nada.
E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágrimas que saltavam dos olhos, fugiu, dizendo que tinha algo importante para fazer.
Então, à medida que a minha inteligência ia ficando clara, comecei a refletir sobre o que tinha acontecido.
Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ouvira quase em sonho, as lágrimas de minha mãe e a sua repentina aflição, o tom condoído com que o médico conversava com ela...
Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito.
Eu estava desenganada.
O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível, desse homem que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto no meu corpo algo imperceptível.
Era o verme que devia destruir as fontes da vida, apesar dos meus dezesseis anos, apesar de minha beleza e dos meus sonhos de felicidade!".
Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre as lágrimas que me inundavam os olhos e caíam sobre o papel.
Era este o segredo de sua estranha atitude; era a razão por que fugia sempre, por que se escondia, por que ainda no dia anterior dizia que tinha imposto a si mesma o sacrifício de nunca ser amada por mim.
Que atitude sublime, minha prima! E, como eu me sentia pequeno e mesquinho diante desse amor tão nobre!
